sábado, 2 de novembro de 2013

CÊ, de CHATICE - Santos Fernando

Esta semana, nas minhas actividades corriqueiras, tive de ligar para um tribunal a fim de me informar sobre o estado de um processo.

A funcionária, diligente, "com certeza doutor, diga-me o número!" o que fiz, dizendo os números um a um e tendo o cuidado de esclarecer nas letras finais, T de tavira, etc...


Responde-me ela que não conseguia localizar o processo no sistema. "Impossível, retorqui, tem de estar!".


"Diga lá de novo!", diz ela simpática.


De novo os números um a um, T de Tavira... Interrompe-me. "Ah... T de Tavira. Entendi P."


Se o T poderia ser confundido com P, já Tavira não sei com o que poderá ter sido confundido, talvez com "parira"?



Bem, certo é que este episódio me fez lembrar um conto de Santos Fernando. 


"Como escritor, Santos Fernando caracterizava-se pela exploração do "nonsense", do absurdo cómico da vida. Os seus personagens têm sempre um comportamento crítico, exagerado. Embora tido por humorista, Santos Fernando considerava-se antes um escritor sério. Foi amigo do escritor Ferro Rodrigues, com quem manteve parcerias no teatro de revista do Parque Mayer, e colaborou nos programas dos Parodiantes de Lisboa, tendo falecido em 1975."

Da colectânea com vinte e duas histórias publicada em 1972 pela Europa América, com o título de ABSURDÍSSIMO, aqui fica, com a devida vénia, o:

CÊ, DE CHATICE

Foi então que o chefe da Central, que era um homem sabedor e prático, expoente de uma época e de uma classe (com a dose do social que vocês quiserem), atendeu o telefonema do seu colega da delegação do Norte, homem prático e sabedor, expoente de uma classe e de uma época, etc., etc.

- Vamos lá fretar um navio - disse este último, do lado de lá.

O da Central apurou o ouvido.

- Vamos fretar o quê?
- Um navio. Para carregar algodão em caroço.
- Em quê?
- Em caroço.
- Ah!
- Tome nota do nome do navio, por favor.
- Estou à espera.
- Nilo - soletrou o colega da delegação do Norte. E repetiu: - Ni-lo.
- Não percebo - protestou o chefe da Central. - Diga isso por letras.

O outro encheu-se de ar.

- Nilo - articulou de um jacto. E perante o silêncio do companheiro-chefe: - Agora por letras.
- O.K. - concordou o da Central.
- Nilo. Ene de Nabucodonosor.
- Nabuquê?
- Nabucodonosor. Um dos primeiros reis da Caldeia.
- Caldeira?
- Caldeia - repetiu o chefe da delegação do Norte. - Cê, de Ceratómetro. A, de arteriotomia. Ele, de Leibniz. Dê, de Demóstenes. É, de epiblástico. I, de inconstitucionalissimamente. A, de absterso.
- Abesquê?
- Absterso.
- Não percebo, Letra por letra, por favor.
- O.K.! A, de anisanto. Bê, de bulbífero. Esse, de seticórneo. Tê, de tapiriba. E, de eritróstomo. Erre, de rizospermo. Esse, de sudoríparo. O, de oleogénese.
- Assim não nos entendemos - berrou o chefe da Central, o papel na sua frente cheio de hieróglifos. - Isto não é o nome de barco nenhum, com os diabos!
- Nilo!. - gritou o chefe da delegação do Norte. - Vou principiar de novo. Tome nota.
- Estou farto de tomar notas. Recomece, ande lá.
- Atenção.
- Mantenho-me atento. Diga.
- Nilo. Ni-lo. Ene, de nopáleas. I, de ipseidade. Ele, de leucócito.
- Ele de quê?
- De leucócito.
- Por letras, por letras.
- Ele, de lofobrânquio. E, de encanzinamento. U, de urbícola. Cê, de congeminência. O, de operculífero. Cê, de crepusculário. I, de integérrimo. Tê, de tetaniforme. O, de orelha-de-mula. Entendido?
- Vamos ver - duvidou o chefe da Central. - Que disse você no fim?
- Orelha-de-mula.
- De quê?
- Mula - esganiçou-se o chefe da delegação do Norte. - Eme, de miriâmetro. U, de uretroscópio, uropígio ou ubaia-muxama. Ele, de loligídeo. A, de apendicalgia. Percebeu agora? - perguntou por fim.
- Sim. E o nome do barco? - inquiriu por sua vez o chefe da Central.
- Nilo. Ni-lo.
- Diga por letras.
- Ene, de nucífrago...

Consta que o navio nunca foi fretado, apodrecendo no cais de embarque, repleto de algas e outras palavras lamacentas. Ele, de lodo. A, de adubo. Eme, de merda...

Santos Fernando, 1925/1975


2 comentários:

Anónimo disse...

Desculpe não poder me identificar como pessoa ... apenas o meu gênero...feminino...Nestes tempos tão modernos...em que o homem e a mulher ...também a mulher vão a lua juntos...aqui no nosso Planeta Terra ainda não recebemos o respeito merecido...mas esta é um outro problema pras mulheres modernas....Quero te agradecer por ter postado esta ¨piada¨maravilhosa de Santos Fernando... kkkkk.... voce e Santos Fernando me fizeram rir ... nestes dias de Finados... Dias tristes....obrigada.....Pena não ter opção de Anonima ainda no Google.....Nestes tempos modernos....voce não acha Rui Vieira...Obrigada....Desculpem meus amigos e inimigos machistas...Mas as mulheres merecem mais respeito e consideração...Obrigada Rui Vieira por este seu espaço ....Obrigada

Anónimo disse...

Me corrigindo...ainda não recebemos o respeito merecido... as mulheres.... mas este é um outro problema pras mulheres modernas...Obrigada, boa noite Rui Vieira